domingo, 5 de fevereiro de 2017

Os limites da Liberdade Religiosa

A liberdade religiosa é um direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988. Entretanto, como todo direito fundamental, ele não é absoluto num determinado caso concreto. Neste texto, iremos abordar quando a liberdade religiosa extrapola os limites constitucionais. 


Liberdade Religiosa

A Constituição assegura à todos o direito de aderir a uma crença religiosa e até de não seguir nenhuma, inclusive de ser ateu ou exprimir o agnosticismo. Este direito pode ser encontrado em diversos dispositivos da Carta Magna.
Art. 5º (...) 
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;  
(...) 
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
A Declaração dos Direitos Humanos também vem expressar esse direito e lembremos que este documento possui força constitucional. O art. 18 estabelece:
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar a religião, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.
Esse direito é muito comum em Estados modernos que tem como base uma sociedade livre e democrática. Maria Lúcia Karam (2009, p. 3) leciona:
“[...] livre, o indivíduo, naturalmente, deve poder pensar e acreditar naquilo que quiser. É esse o campo da liberdade de pensamento, de consciência e de crença. É um campo que diz respeito somente ao indivíduo, não podendo sofrer qualquer interferência do Estado. É um campo essencialmente ligado à própria ideia existente de democracia, pois sem um pensamento livre não existe a possibilidade de escolha que está na base dessa ideia.”
O Brasil é um país laico, leigo ou não confessional, não tem uma religião oficial e nem deve atuar com embasamentos religiosos, seja para legislar, gerir ou julgar.

Charge do jornal  O MOSQUITO, publicada em 1875. (Blog História por Imagens, de Hermes Júnior, sob o titulo "As palmadas que D, Pedro II levou".)

Direito Absoluto?

Como dito na introdução do texto, nenhum direito fundamental é absoluto. Isso ocorre quando dois direitos fundamentais se colidem num determinado caso concreto (direita à liberdade versus direito à vida, por exemplo). Deverá sempre ser ponderado pelo julgador com cuidado. Se tratando, da liberdade, temos alguns casos.

Transfusão de sangue nas Testemunhas de Jeová (Direito à Vida X Liberdade Religiosa)

O médico diante de urgência ou perigo iminente, ou se o paciente for menor de idade, não pratica crime de constrangimento ilegal. Muito pelo contrário, age de acordo com o dever da sua profissão em proteger a vida. Neste caso, não é razoável que a liberdade religiosa possa suplantar o direito à vida. O Superior Tribunal de Justiça já confortou caso semelhante, e de maneira elaborada, justa e coerente o acordão teve a seguinte ementa:
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. (1) IMPETRAÇÃO COMO SUCEDÂNEO RECURSAL, APRESENTADA DEPOIS DA INTERPOSIÇÃO DE TODOS OS RECURSOS CABÍVEIS. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) QUESTÕES DIVERSAS DAQUELAS JÁ ASSENTADAS EM ARESP E RHC POR ESTA CORTE.PATENTE ILEGALIDADE. RECONHECIMENTO. (3) LIBERDADE RELIGIOSA.ÂMBITO DE EXERCÍCIO. BIOÉTICA E BIODIREITO: PRINCÍPIO DA AUTONOMIA.RELEVÂNCIA DO CONSENTIMENTO ATINENTE À SITUAÇÃO DE RISCO DE VIDA DE ADOLESCENTE. DEVER MÉDICO DE INTERVENÇÃO. ATIPICIDADE DA CONDUTA.RECONHECIMENTO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem depois de interpostos todos os recursos cabíveis, no âmbito infraconstitucional, contra a pronúncia, após ter sido aqui decidido o AResp interposto na mesma causa. Impetração com feições de sucedâneo recursal inominado.2. Não há ofensa ao quanto assentado por esta Corte, quando da apreciação de agravo em recurso especial e em recurso em habeas corpus, na medida em que são trazidos a debate aspectos distintos dos que outrora cuidados.3. Na espécie, como já assinalado nos votos vencidos, proferidos na origem, em sede de recurso em sentido estrito e embargos infringentes, tem-se como decisivo, para o desate da responsabilização criminal, a aferição do relevo do consentimento dos pacientes para o advento do resultado tido como delitivo. Em verdade, como inexistem direitos absolutos em nossa ordem constitucional, de igual forma a liberdade religiosa também se sujeita ao concerto axiológico, acomodando-se diante das demais condicionantes valorativas. Desta maneira, no caso em foco, ter-se-ia que aquilatar, a fim de bem se equacionar a expressão penal da conduta dos envolvidos, em que medida teria impacto a manifestação de vontade, religiosamente inspirada, dos pacientes.No juízo de ponderação, o peso dos bens jurídicos, de um lado, a vida e o superior interesse do adolescente, que ainda não teria discernimento suficiente (ao menos em termos legais) para deliberar sobre os rumos de seu tratamento médico, sobrepairam sobre, de outro lado, a convicção religiosa dos pais, que teriam se manifestado contrariamente à transfusão de sangue. Nesse panorama, tem-se como inócua a negativa de concordância para a providência terapêutica, agigantando-se, ademais, a omissão do hospital, que, entendendo que seria imperiosa a intervenção, deveria, independentemente de qualquer posição dos pais, ter avançado pelo tratamento que entendiam ser o imprescindível para evitar a morte. Portanto, não há falar em tipicidade da conduta dos pais que, tendo levado sua filha para o hospital, mostrando que com ela se preocupavam, por convicção religiosa, não ofereceram consentimento para transfusão de sangue - pois, tal manifestação era indiferente para os médicos, que, nesse cenário, tinham o dever de salvar a vida. Contudo, os médicos do hospital, crendo que se tratava de medida indispensável para se evitar a morte, não poderiam privar a adolescente de qualquer procedimento, mas, antes, a eles cumpria avançar no cumprimento de seu dever profissional.4. Ordem não conhecida, expedido habeas corpus de ofício para, reconhecida a atipicidade do comportamento irrogado, extinguir a ação penal em razão da atipicidade do comportamento irrogado aos pacientes.(HC 268.459/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 02/09/2014, DJe 28/10/2014) – Grifo Nosso
Curandeirismo (Liberdade Religiosa X Saúde Pública/ Vida)

O Código Penal no seu art. 284 especifica o crime de curandeirismo. 
Art. 284 - Exercer o curandeirismo: 
I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; 
II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; 
III - fazendo diagnósticos: 
Pena - detenção, de seis meses a dois anos. 
Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.
O crime é contra saúde pública, tendo como os lesados toda a sociedade e eventual pessoa. Ele pode ser praticado por troca de favores, sexuais ou econômico, também pratica o agente os crimes de estupro ou estelionato, respectivamente. A Corte Superior também já confortou o tema. 
PENAL. CURANDEIRISMO. SUBSTITUIÇÃO DE PENA DETENTIVA POR MULTA.DEVER DO JUIZ.1. O CURANDEIRISMO FICOU COMPROVADO COM A HABITUALIDADE COM QUE O REU MINISTRAVA OS "PASSES" E OBRIGAVA, ADULTOS E MENORES, A INGERIREM SANGUE DE ANIMAIS E BEBIDA ALCOOLICA, COLOCANDO EM PERIGO A SAUDE E LEVANDO OS ADOLESCENTES A DEPENDENCIA DO ALCOOL.2. OCORRENTES AS CONDIÇÕES OBJETIVAS PREVISTAS NOS INCISOS II E III DO ARTIGO 44 DO CODIGO PENAL, O JUIZ TEM O DEVER DE SUBSTITUIR A PENA DETENTIVA PELA DE MULTA. RECURSO ESPECIAL, NESTA PARTE, CONHECIDO E PROVIDO.(REsp 50.426/MG, Rel. Ministro JESUS COSTA LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 10/08/1994, DJ 29/08/1994, p. 22211) – Grifo Nosso
O Shabat e o Enem (Liberdade Religiosa X Isonomia)

Visando “a participação no Exame Nacional do Ensino Médio - Enem, em dia compatível com o exercício da fé por eles professada [judaísmo]”, o Centro de Educação Religiosa Judaica ingressou com uma ação na justiça Federal para que a data do exame seja trocada, visto que coincidia com o Shabat (que é o descanso semanal religioso dos judeus). O caso parou no Supremo Tribunal Federal por meio do agravo regimental nº 389. A Suprema Corte entendeu que alterar a data da prova, iria privilegiar um único grupo religioso e, consequentemente, infligir o princípio da isonomia.
Agravo Regimental em Suspensão de Tutela Antecipada. 2. Pedido de restabelecimento dos efeitos da decisão do Tribunal a quo que possibilitaria a participação de estudantes judeus no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em data alternativa ao Shabat 3. Alegação de inobservância ao direito fundamental de liberdade religiosa e ao direito à educação. 4. Medida acautelatória que configura grave lesão à ordem jurídico-administrativa. 5. Em mero juízo de delibação, pode-se afirmar que a designação de data alternativa para a realização dos exames não se revela em sintonia com o principio da isonomia, convolando-se em privilégio para um determinado grupo religioso 6. Decisão da Presidência, proferida em sede de contracautela, sob a ótica dos riscos que a tutela antecipada é capaz de acarretar à ordem pública 7. Pendência de julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 391 e nº 3.714, nas quais este Corte poderá analisar o tema com maior profundidade. 8. Agravo Regimental conhecido e não provido.(STA 389 AgR, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2009, DJe-086 DIVULG 13-05-2010 PUBLIC 14-05-2010 EMENT VOL-02401-01 PP-00001 RTJ VOL-00215-01 PP-00165 RT v. 99, n. 900, 2010, p. 125-135) – Grifo Nosso
Proselitismo Religioso e o Racismo 

Num estudo realizado sobre o caso em que o Supremo Tribunal Federal se deparou em recente julgado (RHC 134682/BA, Rel. Min. Edson Fachin) com o caso do livro escrito pelo padre Jonas Abib, em que ele tece duras críticas religiosas contra o espiritismo, o site Dizer o Direito, chegou na conclusão que o discurso discriminatório criminoso se concretiza quando ultrapassa, obrigatoriamente, três etapas:
  1. Uma de caráter cognitivo, em que atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos (existem religiões diferentes entre si);
  2. Outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles e, por fim (a minha religião é "superior" às demais);  e, por fim,
  3. Uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior.

Ou seja, apesar de comum o proselitismo religioso de superioridade frente as outras religiões, ela se configura criminosa quando busca legitimar a supressão ou redução de direitos fundamentais.

Em Síntese

Apesar da liberdade religiosa ser um direito fundamental protegido pela Constituição Federal, ela encontra limites quando confrontada com outros direitos fundamentais num determinado caso concreto, como a vida, por exemplo. 

Bibliografia citada

KARAM, Maria Lúcia. Proibições, crenças e liberdade: o direito à vida, a eutanásia e o aborto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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